Roberto Ponciano:38 anos e um Semideus
Com 38 anos e status de semideus, a história segue para aqueles que não vão com a cara do Gabi. Para os invejosos e amargurados de plantão, fecho essa crônica com um toque poético que não brota de minha pena: Deus me defenda da maldade dos bons. Lembro-me como se fosse ontem, eu tinha apenas 10 anos, numa noite de segunda-feira, vivendo em Olaria com tios e avó, apaixonado pelo time mais mágico que já vi em campo, o Flamengo de Zico. Após uma noite desastrosa em Santiago, onde o time decente do Cobreloa tentou mais carnificar do que jogar bola e arrancou uma vitória de 1 x 0 com um gol contra do Leandro, o mais Flamenguista dos jogadores rubro-negros, a ansiedade para o terceiro jogo era palpável. Até então, somente Santos do Pelé e o Super Cruzeiro de 75 haviam levantado a Libertadores. Nem o fantástico Internacional de Falcão tinha conseguido esse feito, que parecia um clube exclusivo de argentinos e uruguaios. Mas o esquadrão de Zico, segundo melhor time brasileiro do século XX, superado apenas pelo Santos de Pelé, estava prestes a quebrar essa barreira. Recordo-me do jogo, tenso, mas dominado pelo Flamengo. E veio o segundo gol, numa cobrança celestial de Zico, uma obra de arte pura, um sonho de Cortázar, e eu, pirando no nono andar do mesmo prédio onde moro hoje (após tantas mudanças que nem lembro mais), agora transformado em oitavo por artes da burocracia urbana, berrava feito louco, pois éramos campeões da Libertadores.
Foram 38 anos de dores e vexames. O gol de Jair no Maracanã, numa derrota para o Peñarol que hoje não ocorreria, graças ao VAR. Aquela era do excelente Penharol que nem a mãe perdoava, e um pênalti claro sobre Zico, que renderia expulsão e um gancho severo para o zagueiro adversário. Veio o empate cruel com o Grêmio, 0 x 0 no terceiro jogo, onde o Flamengo desperdiçou um arsenal de gols e foi eliminado em 1984. A partir daí, uma série interminável de vexames e eliminações horríveis, muitas ainda na primeira fase. Um roubo na Bombonera contra o Boca, uma quase vingança contra a Universidad do Chile em Santiago, mas Vinícius Pacheco preferiu se atirar na área ao invés de chutar a gol. E a tragédia contra o América do México no Maracanã.

De 1981 a 2019, foram 38 anos de vexames, vezes nem passando da fase de grupos, sempre com a ideia fixa de que o Flamengo não tinha tradição internacional, que só havia ganhado a Libertadores porque contava com aquele time extraordinário de Zico-Júnior-Leandro, e que estávamos presos em Macondo, condenados a eternamente ser alvo de chacota por desclassificações ridículas frente a times como Palestinos, Universidades, Américas do México e similares pouco tradicionais no futebol sul-americano. Durante esse tempo, quase todos os grandes times brasileiros nos ultrapassaram ou igualaram em conquistas, e estar na Libertadores era mais um incômodo do que uma esperança.
Eu tinha 48 anos em 22 de novembro de 2019. Dos 10 anos no segundo gol de Zico, à véspera de Gabigol se tornar um semideus, eu tinha perdido a virgindade, casado duas vezes, tido 3 relações estáveis, várias namoradas, realizado quase todas minhas fantasias eróticas, visto minha Portela quebrar o jejum nas escolas de samba, tive duas filhas incríveis, criei um enteado como filho, vi Lula ser eleito duas vezes, Dilma eleita e reeleita, o Brasil passar por um golpe político bizarro, passei em concurso público, conquistei uma estabilidade financeira típica da classe média endividada, fiz duas graduações, uma especialização, dois mestrados, plantei árvores, escrevi 5 livros e poderia morrer realizado, sem rancores ou mágoas. Mas não era bem assim.
Confesso que até 22 de novembro de 2019, eu era um dos invejosos e amargurados. Mesmo com o Flamengo hexa, mesmo com todos os títulos e sendo o único carioca campeão do mundo em várias modalidades, eu estava ressentido pelas frustrações das perdas de Libertadores na minha vida adulta. Não suportava a zombaria da mídia e das torcidas rivais dizendo que o Flamengo não tinha tradição em competições internacionais, que o time de Zico tinha sido um ponto fora da curva.
E então surgiu o Zé Pilintra, o Exu Catimbeiro, o kizombeiro – que nos fez o favor de ignorar solenemente, em momentos distintos, o triunvirato do mal: Cláudio Castro, Bolsonaro e Rodolfo Landim. Gabigol tem alma de Flamenguista, o carioca que nasceu em Santos, o predestinado semideus Gabigol. Vão me falar que não foi Gabigol que ganhou sozinho 2019, vão me falar de investimento, vão me falar de Jorge Jesus, vão me falar que com aquele time o Flamengo seria campeão de qualquer jeito. São uns cretinos, uns idiotas da objetividade. Sinto pena de vocês.
Não acredito em destino nem determinismos. Sim, o time de 2019 era um timaço, o de 2022, nem tanto. Sem o predestinado Gabigol não teríamos ganho nem uma das duas Libertadores.
Assisti ao jogo em minha casa, na mesma Olaria de 1981 – depois de me mudar e viver em dezenas de casas e 4 cidades diferentes – como 99% da Nação que, infelizmente não teve grana para viajar para Lima. Apreensivo, nervoso, ansioso, com o medo estampado de sofrer mais uma decepção. O SuperFlamengo de Jorge Jesus e seus 11 apóstolos já tinha matado o imortal, com um 5 x 0 no Maracanã (e logo o Grêmio, que era uma toca eterna do Flamengo), já tinha eliminado o Internacional no Beira Rio e chegava favorito contra um supercampeão, o River. Num primeiro tempo muito truncado, em que achei que o Flamengo nem jogou tão mal assim, nosso jogo não entrou, e num cochilo da zaga tomamos um gol que fez muita gente rezar para todos os santos.
Eu sou muito ateu, minha única religião é o Flamengo, aí, nestas horas, abro mão do meu ceticismo. Eu oro e rezo para Jeová, para Jesus, para São Judas Tadeu, para Buda, Maomé, Zé Pilintra, faço promessas que eu nunca vou pagar, desde que o Flamengo reaja e vença. O gol do River foi tão pesado que na praça em frente a minha casa, onde centenas de torcedores da “Fla-Olaria” estavam reunidos, o silêncio foi de um sepulcro, dava para cortar o silêncio com um canivete. Minha esposa e enteado trancaram-se o primeiro tempo todo no quarto e não queriam mais assistir. Eu, que sou daqueles Flamenguistas que assiste o jogo até o fim, mesmo que o Flamengo esteja tomando de 4 x 0, irracionalmente esperando uma virada, não saí da sala nem para cuspir ou mijar.
Veio o segundo tempo e claramente o Flamengo melhorou, num jogo muito nervoso e encardido. Eu chamei meus familiares de volta para a sala e falei convicto e profético: “estamos melhor, vamos empatar”. Tinha plena convicção que iríamos empatar e ganharíamos na prorrogação, porque teríamos mais fôlego, e estávamos melhor na partida. Acertei um prognóstico, o do empate, errei outro, o de vencer na prorrogação, afinal, este Exu Zombeteiro, Gabigol, ri das previsões. No minuto cabalístico 43, a Santíssima Trindade do Jesus de 2019, Bruno Henrique, Arrascaeta e Gabigol entrou em ação, e aí não há tabu ou prognóstico que resistisse, e lá estava nosso Semideus predestinado, bem colocado para empurrar para as redes e levar ao choro cada um dos rubro-negros que assistiu ao jogo.
Momento de catarse. De levantar a cabeça e sair do sofrimento e do desespero. Boa parte da Nação sequer assistiu o segundo gol, porque estava chorando ou rezando depois do primeiro. Tanta gente tão ocupada em expurgar a própria angústia, a própria aflição de 38 anos de humilhação que não viu o Semideus ordenar a Diego Ribas que o lançasse. Aí o Gabigol da favela, da comunidade, das peladas, deu um drible no revés. Um toquinho não faltoso no corpo do Pinola, muito maior e mais corpulento que o nosso Zé Pilintra Gabi foi o suficiente. A malandragem deste carioca que nasceu em Santos, escreveu a página mais gloriosa da maior de todas as finais de Libertadores.
Bola com força dentro do gol, um orgasmo, um êxtase, uma loucura e um frenesi coletivo. Se no dia 22 de novembro eu morreria um homem ressentido e recalcado, ali não me faltaria mais nada, morreria feliz, com todos os meus desejos cumpridos na terra. Gabigol errou ao dizer ontem, em sua breve despedida do Flamengo, que entrou para imortalidade rubro-negra em 2024. Ele entrou no pantão dos Deuses Rubro-Negros em 2019, junto com Valido, Domingos da Guia, Leônidas da Silva, Zizinho, Vavá, Dida, Rondinelli, Nunes, Petkovic, Doval, Carlinhos, Adriano, Zico, Júnior, e com lugar de destaque, entre nossos deuses principais.
Nunca vi tanta gente chorar de felicidade junta, tirando a posse do Lula em 2003 ou o retorno dele em 2023.
Tem que ser um ser humano muito feio, com a alma mutilada para ser flamenguista e odiar Gabigol.
Ele nos deu a maior sensação de felicidade desde o gol de falta de Zico contra o Cobreloa em 1981.